1ª FliJunco ou Uma noite memorável!

Pode até alguém dizer que a comparação é exagerada, mas a gente não pode desprezar uma ideia nascida no mais alto ponto do nosso cocuruto. Imaginem encontrarmos num bar no Leblon, onde nunca fui, Rivelino, Pelé, Gerson, Manga, Zico, Sócrates e Garrincha? Seria algo fantástico e digno de registro para a história. Para os amantes do cinema, de repente, ao cruzar uma esquina em Nova Iorque, onde ainda não fui, mas minha filha Héstia já, lá estão sentadas num banco de uma praça a papear Meryl Streep, Katharine Hepburn e Cate Blanchett? Vamos fechar esta introdução com aqueles que são religiosos e, numa visita ao Vaticano, também nunca estive lá, encontre na praça São Pedro Jesus Cristo, Irmã Dulce, Francisco de Assis e Carlo Acutis dialogando sobre as novas tecnologias? Seria motivo para felicitarmos o acontecimento? Se todas as respostas receberem um sim, então a 1ª noite da 1ª FliJunco em Sátiro Dias foi um momento histórico para a região Nordeste da Bahia.

Para aqueles que insistem na literatura como saída para o mundo, mesmo que todos os prognósticos indiquem que as portas estão sendo fechadas para tal, o que aconteceu na noite desta quinta-feira, 18 de setembro de 2025, na praça José Robério de Oliveira, numa noite de temperatura para lá de agradável, sob as bênçãos de Nossa Senhora do Amparo, foi algo desbravador das florestas das desesperanças para cultivo da fé na raça humana. Num só dia, num único espaço, lá estavam Antônio Torres, Estela Maris, Marcelo Torres, Luiz Eudes, Tom Torres, Décio Torres Cruz, para ficar nos mais famosos, laureados pelo prefeito Pedro Raimundo Santana da Cruz, o Pedrito, e apoiados pelo prefeito de Inhambupe Hugo de Leônidas.

Foi a reunião do que temos de mais fino nas artes literárias e a certificação da ligação destes escritores com nossa região, confirmando o pertencimento e a valorização da aldeia, fundamentais para a construção da identidade, da dignidade e da continuidade cultural de um povo. A homenagem feita a Antônio Torres, imortal da cadeira número 23 da Academia Brasileira de Letras é aquela raiz que sustenta o que pensamos que está desmoronando. E o menino que deixou o Junco para revelar-se ao mundo, e arrastou consigo sua cidade, continua infindavelmente a se sentir parte de uma aldeia, como se a reconhecer que não está sozinho no mundo. E sabe que há uma rede de histórias, afetos, tradições e lutas que o formam. É preciso gritar aos céus como isso é louvável!

Antônio Torres, em sua palestra, já que a noite foi em sua homenagem, passou aos presentes uma autoestima individual, mas que é fruto da coletividade junquense. Não se trata apenas de respeito às origens e aos mais velhos, solidariedade entre os membros da comunidade ou engajamento em causas locais e na preservação cultural. Valorizar a sua aldeia é reconhecer que há beleza, saberes e riquezas que não estão nos grandes centros, mas nas práticas cotidianas, nas festas, na língua, na culinária, nas crenças e nas memórias. Isso contribui para a preservação dos conhecimentos tradicionais, o fortalecimento da cultura local como patrimônio vivo, a educação das novas gerações com base em suas raízes e, principalmente, a resistência contra cancelamentos históricos e culturais, bem resumidos na expressão “Essa é a terra que me pariu…”, do romance Essa Terra, do autor homenageado, brilhantemente adotada pelos organizadores da 1ª FliJunco. Pegando um outro mestre da literatura, foi Fernando Pessoa quem escreveu: “ A aldeia não é pequena — ela é o mundo visto com profundidade.”.

A homenagem a Antônio Torres não é apenas pelo fato de ele ser nosso. É também por ser um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Nasceu no dia 13 de setembro de 1940, em Junco, hoje Sátiro Dias, completando 85 anos há uma semana. Ocupa a cadeira nº 23 da Academia Brasileira de Letras desde 2013, sucedendo Luiz Paulo Horta. Também é membro da Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a cadeira nº 9, antes pertencente a João Ubaldo Ribeiro. Desde sua estreia em 1972 com o romance Um Cão Uivando para a Lua, considerado uma revelação pela crítica, já se mostrava craque nas palavras. Revelou-se para o mundo com a publicação, em 1976, com o consagrado romance Essa Terra, que retrata o drama da migração nordestina e o sentimento de deslocamento. Escreveu ainda O Cachorro e o Lobo, Pelo Fundo da Agulha, Meu Querido Canibal, Querida Cidade, entre outros. Como ele mesmo disse ao Contraprosa, são 12 romances, 1 livro de contos e outras coisas mais.
Graças ao seu talento e a teimosia divina de não se desgarrar do ranço do lugar que o pariu, hoje tem reconhecimento internacional, traduzido em mais de 20 países, inclusive França, Vietnã, Paquistão, Alemanha e Argentina. Recebeu o título de Chevalier des Arts et des Lettres do governo francês em 1998, o Prêmio Machado de Assis da ABL pelo conjunto da obra em 2000, o Prêmio Jabuti, em 2007, por Pelo Fundo da Agulha. E tudo isso começou no Junco, com sua primeira professora estimulando leitura em voz alta de literatura de cordel e versos de Castro Alves. A caminhada estava traçada e Antônio Torres fez da memória de sua terra natal o centro nervoso de sua obra.
E para não dizer que o homenageado foi música de um só instrumento, lá estavam outros escritores regionais de peso, a exemplo de Estela Mares Silva da Costa, conhecida como Stela Maris, figura marcante de Inhambupe, professora aposentada, com uma trajetória rica tanto na educação quanto na cultura local. Começou a escrever aos 54 anos, motivada por reflexões sobre a juventude e a história de sua cidade. Seu primeiro livro foi Essa juventude do século XX. Se não me engano, já foram 5 livros publicados e ainda defende apaixonadamente a educação e a leitura como ferramentas de transformação.
Também marcaram presenças Décio Torres Cruz, professor aposentado da Ufba e também membro da Academia Baiana de Letras, e autor de inúmeros livros; Luiz Eudes, o curador da 1ª FliJunco, autor de Cangalha do Vento, obra profundamente enraizada na cultura nordestina; Tom Torres, que hoje leva o grupo de teatro Mandacaru ao Instituto Federal de Educação de Maceió e o cronista Marcelo Torres, o escritor do livro O dia em que achei Drummond caído na rua, uma coletânea de 26 crônicas bem-humoradas sobre o universo da literatura. Isso tudo só para dizer aos meus poucos leitores que demorará muito para outra vez encontrarmos tanta gente talentosa em poucos metros quadrados nesse sertão de Nosso Senhor. Mas ainda temos hoje e amanhã para aproveitar os últimos momentos da 1ª FliJunco, que já nasceu promovendo fatos históricos, extraordinários e impagáveis.
Obs. Estamos trabalhando na edição de vários vídeos que serão publicados nas próximas horas no Contraprosa YouTube. Colaborou com esta edição o jornalista Jorge Souza e o nosso Uilian Sousa.