O filho da Lagoa do Padre
A Vereda Pimenteira estava verdinha no dia em que Olimpo veio ao mundo. A roça do seu pai era pequena, mas pegava um pedaço da vereda e suas águas alimentavam o roçado e indicavam que aquele inverno geraria muita fartura. Seu Pedro estava feliz porque finalmente brotou um filho no ventre de sua Teresa. Os outros quatro ou cinco já nasciam sem respiro. Vinham ao mundo já mortos, mesmo que dona Josefa, parteira do lugar, tenha feito o possível e o impossível para que se ouvisse o choro da existência. As crianças já nasciam defuntas, pálidas, sem essência. A salvação foi um médico que chegou no povoado Lagoa do Padre, distante da Rocinha por muito menos de meia légua. Aconselhado por dona Josefa, foi falar com o doutor, que exigiu a presença de Teresa e uma carrada de exames. Teria que ir a Pilão Arcado e fazer os exames no Posto Médico. Travaram 10 longas léguas na D20 de Ermírio. Depois de 4 atoladas na estrada de barro e areia, chegaram. Foram 3 ou 4 viagens, mais um lote de remédios e beberagens. Quando a barriga de Teresa começou a se mostrar, a esperança de um filho voltou. Olimpo brotou.
Pedro trabalhava dobrado para dar do bom e do melhor a sua família, que agora estava completa. Tinha um herdeiro e este virou a preocupação prioritária. Tudo era em função de Olimpo. O menino mamou até os dois anos e cresceu bem cuidado e bem vestido. O garoto não perdia uma só feira em Lagoa do Padre. Pedro e Teresa passaram a frequentar a feira semanal só para levar o filho. Um dia, alertado por dona Josefa, resolveram matricular o garoto na escola do povoado. Teresa fazia questão de levar o filho todos os dias pela manhã. Perto do meio-dia voltava para buscá-lo. No início, Olimpo se interessou pelos estudos. Entretanto, depois de mal saber ler e escrever um pouco, começou a não querer mais ir à escola. Apesar dos conselhos e insistência dos pais, Olimpo abandonou os estudos. Pedro se conformou. Afinal, ele era analfabeto e estava vivo.
E assim Olimpo chegou aos 16 anos. Enquanto os pais estavam na labuta com o sítio, ele passava o dia indo para Lagoa do Padre ou com um estilingue na mão à caça dos passarinhos. Dia de feira, lá estava ele entre os barraqueiros ou nas brincadeiras com outros moleques. Daí até os 18 anos, sua vida sofreu dois baques imensos. Primeiro foi o pai. O dia escureceu e Pedro não havia chegado do roçado. Teresa pegou o candeeiro e resolveu ir até a vereda. Não viu sinal algum do marido. O mandiocal estava alto e ele disse que faria a capina. Deveria estar por ali. De repente, tropeçou em algo. Era o corpo de Pedro com a mão ainda segurando a enxada. Teresa deu um grito. Pedro foi enterrado no outro dia, no fundo da casa que construiu na terra que sempre trabalhou, com direito à presença de muitos, inclusive de uma rezadeira. Diziam que um homem como ele já tinha um lugar reservado no céu, mas a rezadeira era uma garantia a mais.
Tempos depois, Teresa tinha ido a Pilão Arcado resolver a documentação da pensão dela e do filho, já que Pedro tinha se aposentado há pouco mais de um ano. Depois de tudo resolvido, o filho começa a exigir sua parte na pensão e não adiantou dizer que o dinheiro com ela estava mais seguro. Olimpo era um destrambelhado com tudo. Dinheiro para ele era como algo infinito. Teresa sabia que aquilo viraria um vendaval, mas assentiu. Todo mês pegava metade da pensão e entregava a Olimpo. Não demorava muito e lá estava o moleque na mesa de apostas em Lagoa do Padre ou desaparecia montado a busca de um forró. Rodava Pilão Arcado de Nova Holanda a Campo Grande, de Brejo do Buriti a Mandarino. Bastava ter festa, cavalgada, vaquejada, comício ou alguma inauguração. Vezes que passava 7, 8 ou nove dias fora de casa, montado num cavalo ou na garupa de uma motocicleta. Na maioria das vezes, chegava em casa bêbado.
Além de gastar toda a sua parte da pensão, Olimpo entrava quase sempre no dinheiro de sua mãe. Quando ela menos esperava, aparecia uma dívida de apostas ou de bebidas e alimentação deixados no fiado. Teresa pagava tudo ou, quando a grana do mês tinha sido evaporada, apalavrava para o mês seguinte. E tudo isso regrado a sermões, conselhos, pedidos de juízo, apelos para que desse um tempo e pensasse um pouco no futuro. Não adiantava.
Olimpo estava sendo criado sem limites. Teresa atendia a todas as suas vontades e o filho demonstrava não haver limites, regras sociais ou planejamento de vida. Foi-se acostumando a ter tudo o que era possível ter naquelas bandas e não conseguia lidar com contrariedades. Sem experiências de frustração, Olimpo sobreviveria e superaria os obstáculos que a vida estava reservando para ele?
A resposta talvez estivesse próxima. Depois de passar uma semana se divertindo numa festa em Passagem, já sem dinheiro e bêbado, chegou na garupa da moto de um dos amigos. O percurso de mais de 70 kms agora estava bem mais tranquilo com a inauguração do asfalto de Lagoa do Padre até Pilão Arcado, seguindo até Passagem, nas margens do São Francisco. Depois de se despedir do camarada, percebeu que a mãe ainda não havia saído no alpendre da casa para recebê-lo, como de costume. A porta estava aberta e tudo estava calmo e em silêncio. Foi até o quarto da mãe. Lá estava ela desmaiada, com o lençol molhado de sangue. Entrou em desespero e não sabia o que fazer. Saiu feito um louco a gritar na direção de Lagoa do Padre.
O socorro veio no carro de um vereador da região. Teresa ficou internada no hospital de Pilão Arcado e a causa de tudo era um câncer violento em fase avançada. Três meses depois, um caixão era enterrado com o corpo de Teresa, ao lado do túmulo do marido, no fundo da casa de morada. Olimpo tinha completado 18 anos há pouco mais de três semanas. Agora estava só. Procurou o sindicato para resolver o caso de sua pensão, mas descobriu que não teria mais direito, a não ser que estivesse estudando. Como resolver aquela situação? Viveu a vida toda sem limites, acreditando que suas necessidades eram sempre prioritárias. E agora? Não tinha mais Pedro nem Teresa! Qual o caminho para seguir na busca do seu futuro?
Passou uma semana sozinho na casa tentando encontrar uma saída. Procurou nos pertences da mãe se havia algum dinheiro guardado. Encontrou a bolsa de Teresa e lá estavam pouco mais de mil reais. Seguiu para a Lagoa do Padre, foi até o bar de Genésio e só não gastou todo o dinheiro porque o velho amigo de seu pai estabeleceu limites.
– Já chega, Olimpo. Vá para casa.
E fechou o bar.
Seis meses após a morte da mãe, Olimpo estava sem dinheiro totalmente. Não passava fome porque havia farinha, feijão e milho armazenados. E o que não faltava era galinha de capoeira no terreiro. Mas não havia mais festas, cavalgadas, torneios de futebol… A vida deixou de ser divertida.
Mas…
Um dia aparece um senhor numa camionete Hilux branca buzinando no seu terreiro. Após lamentar a morte de sua mãe, dar pêsames, elogiar a falecida, veio a pergunta que mudou a vida de Olimpo.
– Não quer vender as terras, não?
A pergunta despertou infinitas possibilidades. Pronto! Era só vender as terras! Ele não nasceu para trabalhar como fez o pai a vida inteira. Aquilo era uma loucura e um negócio sem futuro, Trabalhar? Nem a ferros!
Fato é que Olimpo vendeu as 30 tarefas que Pedro herdou. Só exigiu que a casa não entrasse no negócio. A tarefa de terra onde estava a casa ficaria como sua morada e porque lá estavam enterrados os pais. Tudo feito e documentado, Olimpo logo pensou em comprar uma motocicleta. Pagou a um amigo para treiná-lo. Não demorou muito e lá estava ele em sua moto de um ponto a outro de Pilão Arcado. Voltou aos velhos tempos. E agora, com um tento a mais: mulheres. Algumas moças, de olho no futuro, queriam Olimpo para um bom casamento, até o tempo que durasse o dinheiro dele.
Assim a vida seguiu por mais de um ano.
O dinheiro acabou.
Olimpo já passava dos 19 anos e precisava de um emprego. Conversando com pescadores de Passagem, propuseram uma sociedade. Ele entrava com o barco, o motor e as linhas e o peixe que desse da pescaria ele ficaria com 50% do lucro. Um bom negócio. Só que Olimpo havia jogado todo o dinheiro nas apostas, nas festas, nos abraços divertidos das mulheres. Transformou em pó 30 tarefas de terra da Vereda Pimenteira em pouco mais de 1 ano. Mas havia uma saída: podia comprar fiado e pagar com a pescaria. Pronto! Tomou o último gole no bar do Genésio e seguiu para Pilão Arcado. Genésio ainda o alertou:
– Você bebeu demais, Olimpo. São 60 km de asfalto sinuoso. Vá descansar e amanhã você vai cedo para Pilão.
Não ouviu. Genésio era chato demais. Tudo era um perigo aqui, perigo ali…Ora bolas! No pensamento de Olimpo, seu destino estava traçado. Seria um empresário da pesca no São Francisco. Passagem seria seu porto seguro. Seguiu viagem e parou ainda em Campo Grande para tomar mais outras. Seguiu para Pilão Arcado. Chegou no cruzamento da pista que segue para Passagem e tomou à direita. Um caminhão passava e resolveu tomar o acostamento para falar com alguém numa casa à beira da pista. Coisa rápida. Olimpo resolveu atravessar o caminhão no acostamento, quando deveria apenas pegar a pista e dobrar à direita. O acostamento era pura areia e ele perdeu o equilíbrio exatamente na hora em que o motorista arrancou para seguir em frente na direção de Passagem. Olimpo caiu logo depois dos pneus da carroceria. O motorista do caminhão estava concentrado em verificar a pista e não viu a queda. As rodas esmagaram Olimpo. O motorista só parou após ouvir o estalo seco da quebra do capacete. (Landisvalth Lima – do livro Contos levemente amaros – ainda inédito)
Imagem: Copilot
