A empresa fantasma
Tinha terminado de tirar o leite, mas o caminhão da empresa de laticínios já havia passado. Agora restava pegar a motocicleta e tentar acompanhar o carro. Seria um prejuízo enorme não entregar aqueles vinte litros de leite. Rapidamente terminou a ordenha e nem mesmo desamarrou as cordas das pernas da última vaca. Colocou os vasos cheios na garupa da moto e seguiu pela estrada do Capim Duro. Se não alcançasse o caminhão no povoado, teria que seguir até o Alto de Gruê. Foi o que aconteceu. Conseguiu alcançar o veículo em frente ao cemitério. Despachado a carga, voltou à fazenda Boi Manso. A mãe já acordada sabia que ele não passou a noite em casa.
– Quero ver se você vai continuar essa vida até quando, Cleiton? Onde já se viu passar a noite na farra e esquecer da hora de tirar o leite? Já é a terceira vez essa semana, menino!
– Não se avexe, mãe! Eu resolvi o problema, não foi?
– Mas um dia a casa cai, Cleiton. Seu pai chega hoje com outra carrada de bezerros para negociar. Nem vou dizer a ele dos seus atrasos para não contrariar.
E assim o tempo foi passando de improviso.
Um dia, Cleiton parou para pensar em como sua vida era sem futuro. A única responsabilidade que tinha era tirar leite para suprir suas necessidades. O pai entregou a ele a ordenha das vacas da fazenda e ele ficava com a metade do resultado. Em épocas de fartura, chegava a entregar até cinquenta litros de leite ao caminhão. A outra metade ficava com sua mãe para suprir as necessidades da casa, fazer requeijão e alimentar os trabalhadores. Se não fossem as farras, já teria um bom dinheiro guardado. Mas que futuro reservava aquela vida? Não havia objetivos traçados. Era só esperar o fim de semana, seguir para uma festa qualquer, encher a cara e voltar para casa na lida do leite. Não quis estudar, mal concluiu o fundamental no Colégio Waldir Pires, em Heliópolis. Bem que a mãe insistiu e até sonhou com ele advogado, mas não havia vocação, não havia nada. Talvez hoje…Não, não tinha jeito para essas coisas. Não se via de gravata e terno a cuidar das causas alheias. Não era com ele.
E dormiu na rede armada no alpendre da casa.
Acordou com a mãe dizendo que tinha visita. A hora do almoço já tinha se ido e chegava por ali o prefeito da cidade. Cleiton havia ajudado muito na campanha e, depois da posse, era a primeira vez que aparecia na Boi Manso. Foi recebido com alvoroço.
– Grande apoiador, Cleiton de Messias da Boi Manso! Dona Gleide me falou que você estava tirando uma madorna depois do almoço. Eu não queria incomodar, mas ela insistiu. Você está bem, Cleiton?
– Estou sim, prefeito. Disse, ainda meio grogue da soneca.
E o papo foi recheado de amenidades e enrolação. Cleiton se queixou que o prefeito ainda não tinha melhorado a estrada do Capim Duro.
– Daqui para Fátima é uma buraqueira só. Até de moto está difícil.
– É verdade, mas eu estive a semana passada no gabinete do governador e ele está vindo para Fátima assinar a ordem de serviço para asfaltar a estrada. Ele disse que assim que terminar a de Heliópolis vai começar a asfaltar a estrada do Capim Duro.
O prefeito esperava o momento certo para entrar no assunto que o levou até a Boi Manso. Depois de tomar um cafezinho oferecido por dona Gleide, aproveitou que ela seguiu para a cozinha e iniciou a pregação.
Zé da Onça chegou ao cargo de prefeito de Fátima a partir de uma organização que burlou todas as normas da boa conduta republicana. Radialistas, blogs, jornais, Tvs e redes sociais, a um só grito, indicavam a maior compra de votos da história da cidade. Conseguiu transferir votos da cidade sergipana de Poço Verde aos montes. Também trouxe eleitores do Raspador, de Ribeira do Pombal, Cícero Dantas, Heliópolis e até índios do Banzaê. O município pulou de 14 mil eleitores para 19 mil em menos de dois anos. Havia mais eleitores que habitantes no município.
Zé da Onça tinha esse nome porque inventou uma história de que, numa noite, em sua fazenda na Bandinha, encontrou uma onça que estava comendo seus bezerros. Jurou de pés juntos que chegou a atirar no animal pela madrugada, mas o tiro não foi suficiente e ele teve que ir para cima com um facão. Foi aí que levou uma patada e uma das unhas abriu sua face e hoje leva consigo aquela cicatriz. A onça ninguém sabe onde foi parar. Nem mesmo rastros ficaram, mas a história levou ao nome, mesmo o povo descobrindo depois que, na verdade, José havia tomado uma carraspana e tropeçou numa pedra, caiu numa cerca de arame farpado e chegou em casa com a cara rasgada.
No início, muitos acreditaram e ele se aproveitou da história e se candidatou a vereador quando a cidade foi emancipada. Nunca mais perdeu uma eleição e o nome, até que resolveu se candidatar a prefeito. Como os dois grupos dividiam o eleitorado, sabia que a única possibilidade de garantir a vitória era trazendo votos de fora. Para isso, contou com a ajuda do deputado Osvaldo Viana, também craque na organização de tretas. Deu certo.
Só que agora havia muitas despesas a pagar, aliados a alimentar e precisava de mais grana. Foi para isso a visita a Cleiton.
– Você me ajudou muito na campanha e ainda não lhe retribuí. Mas chegou a hora. Tem um empresário que me ajudou muito e não tem como vender para a prefeitura porque a empresa dele tem restrições na Receita Federal. Precisamos de outra empresa para fazer as transações com a prefeitura. Foi aí que pensei em você. Que tal abrir uma empresa no seu nome? Soube que seu pai tem uma casa em Heliópolis, que está até fechada. Seria o endereço ideal para a abertura da empresa.
– Mas eu não tenho dinheiro para investir numa empresa. Só se meu pai me emprestasse…
– Não, Cleiton. Você só vai emprestar seu cpf. Não haverá mercadorias, empregados, nada. É só no papel, uma empresa de fachada. Tudo será administrado por nós e vinte por cento do lucro dela você embolsa.
– Mas isso não vai dar problema…
– Fique tranquilo. É a oportunidade da sua vida.
Ficou combinado então de Cleiton se dirigir ao escritório de contabilidade em Fátima com todos os documentos e tudo seria resolvido.
Seis meses depois, Cleiton estava montado numa camionete topo de linha, frequentando festas. Alugou um apartamento em Salvador, convidou amigos, amigas e fez uma farra nas redes sociais com a passagem de Bell Marques na frente do seu ap, com direito a parada do cantor e um grande abraço ao amigo Cleiton de Fátima.
Claro que esse cenário de enriquecimento rápido chamou atenção das pessoas. Os pais já estavam a par de tudo e só imaginavam que o filho se enveredou pela política e estava se dando bem. Mas Cleiton precisava dar uma satisfação. Ninguém fica bem de vida em pouco tempo, a não ser que…
– Diga que ganhou na Lotofácil, sugeriu Zé da Onça. Não se preocupe que ninguém lê Diário Oficial e nós escondemos seu nome ao máximo. Diga que ganhou na loteria.
E assim a vida seguiu em frente. Dois anos se passaram e só apareciam notícias boas. Uma foi difundida aos quatro cantos do município informando que as contas do gestor da prefeitura de Fátima foram aprovadas pelo Tribunal de Contas.
– E as do ano passado entregamos ontem e vão ser aprovadas. Vai para a mão de um conselheiro amigo, gabava-se Zé da Onça ao trazer mais papeis para Cleiton assinar, seguido de mais um pagamento recheado de notas de 200 reais.
Cleiton já não tirava mais o leite. Fez um curral novo, comprou equipamentos de última geração e tudo agora era automatizado. Tinha uma produção diária de 2 mil litros de leite e empregados para tomar conta de tudo. Sobrava tempo para as viagens e farras. Finalmente tinha uma vida invejável e devia tudo isso a um político que todos acreditavam não ter competência para administrar. Sim, devia muito a Zé da Onça. Assim que ele sair da prefeitura, o caminho estará aberto para ser deputado.
Foi com o pensamento positivo que dormiu naquela terça-feira, na casa nova construída ao lado da moradia dos pais. No seu quarto confortável, lembrou-se da viagem que deveria fazer no outro dia para Fátima. Deveria sair cedo porque estava chovendo e a estrada se achava em petição de miséria, ainda. Pegou no sono profundo e pensou até sonhar com alguém batendo na porta.
– Toc, toc, toc. Polícia Federal!
Não era sonho.
(Landisvalth Lima – do livro Contos levemente amaros – inédito)
Vamos torcer que esse sonho seja real, realmente gostei da utopia!!
As utopias podem não ser a realidade, mas alimentam nossas esperanças. Obrigado, Macedo.