Crise real e mudança duvidosa

Imagine um município onde o prefeito anterior está com suas contas rejeitadas pelo tribunal mais benevolente do planeta, por gestos que vão desde corrupção até contratação de servidores além de qualquer número normal. Vamos também compreender que essas contratações acabaram por garantir a eleição do sucessor, mediante uma quantidade de irregularidades eleitorais jamais vista na história do município. E, para completar o cardápio, pense no aperto que passa hoje a população da localidade. Esse município existe. Na verdade, são vários. Mas vamos nos ater a apenas um, para que nossa análise tenha uma compreensão maior. Hoje é dia de Cícero Dantas!
Nos últimos meses, as redes sociais tem sido bombardeadas com escândalos com o sobrenome de Cícero Dantas. Funcionários com salários atrasados, ônibus escolar sem combustível, encrencas com licitações, carros da saúde faltando combustível no meio da viagem, vereadores com familiares como dependentes do Bolsa Família… Um inferno! Não precisamos aqui detalhar estes fatos porque o Tira Teima, a Rádio Regional e outros veículos de comunicação já o fizeram. O que aqui queremos é analisar os motivos que fazem uma população suportar tudo isso sem reagir de forma contundente.
Como se trata de um comportamento coletivo, pois é a maioria quem escolhe os governantes, isso pode ser descrito por vários termos, dependendo do contexto e da ênfase que se quer dar. Aqui vamos tentar buscar algumas nuances, sem querer dar conotação científica. Comecemos pelo campo sociológico e psicológico. Podemos chamar inicialmente de dissonância cognitiva coletiva, que acontece quando um grupo mantém comportamentos que contradizem seus próprios valores ou conhecimentos, mas racionaliza para evitar o desconforto de mudar. Um outro seria a normalização do desvio, quando práticas inicialmente vistas como erradas passam a ser aceitas por repetição e conivência. Somado a isso temos o conformismo social, que é a tendência de seguir o comportamento do grupo, mesmo sabendo que está errado, por medo de exclusão ou conflito. E, por fim, a cultura da impunidade, que é quando a ausência de consequências reforça comportamentos errados como norma social.
Vamos trazer para a linguagem mais próxima da nossa gente. O que está ocorrendo em Cícero Dantas é a patologia social da teimosia coletiva. Pode ser menos doloroso dizer que se trata de uma negligência consciente ou, para os menos otimistas, uma espécie de cegueira moral. Como as doenças são muitas, vamos às menos mortais: autoengano social e complacência cultural. Sim, não está fácil compreender, mas vamos aos exemplos históricos e culturais. Em regimes autoritários, populações muitas vezes mantêm comportamentos prejudiciais por medo ou por terem sido condicionadas a aceitar o inaceitável. Além disso, em sociedades com corrupção sistêmica, o jeitinho vira norma, mesmo que todos saibam que prejudica o bem comum.
O comportamento de um povo que insiste em agir de forma errada, mesmo consciente disso, pode ser explicado por fatores como compulsividade social, pressão cultural, e baixa flexibilidade cognitiva. Isso é muito comum na política, quando impera a cultura da impunidade e a normalização do desvio. É aí que a corrupção vira sistêmica e muitos cidadãos passam a ver práticas ilegais como normais ou inevitáveis. Mesmo sabendo que votar em candidatos com histórico duvidoso pode prejudicar o município, estado ou país, parte da população continua repetindo esse padrão por desilusão, falta de alternativas ou apego a ideologias. E o principal de tudo: a falta de consequências reais para crimes políticos reforça a ideia de que nada muda, gerando apatia e conformismo. Alguma coisa estaria mudada se governantes corruptos fossem parar atrás das grades.
Estas doenças sociais ocorrem também em outras áreas. Por exemplo, na questão do meio ambiente há muita negligência consciente e comodismo. Apesar da ampla divulgação sobre os impactos das mudanças climáticas, muitas pessoas continuam adotando hábitos prejudiciais — como o consumo excessivo de plástico ou o desmatamento ilegal. Isso vai do comodismo à falta de fiscalização, ou crença de que minha ação individual não faz diferença. Para complementar, em comunidades onde práticas nocivas são culturalmente enraizadas – como queimadas ou pesca predatória – mudar exige esforço coletivo e educação ambiental persistente.
Não poderia também deixar de levar a discussão para minha área, a educação. Nossos educadores continuam resistentes às mudanças onde se perpetuam as falhas. Em sistemas educacionais ultrapassados ou ineficientes, professores e gestores mantêm métodos por tradição, falta de formação ou comodismo. Mesmo sabendo que abordagens mais inclusivas e tecnológicas seriam melhores, há resistência à inovação e medo de perder controle. Não podemos esquecer que pais e alunos também contribuem ao aceitar passivamente um ensino que não prepara para o mundo atual, reforçando o ciclo e transferindo para a série seguinte os problemas de aprendizagem com a aprovação automática.
Se formos mais precisos na individualização de tal comportamento, perceberemos que está ligado a traços compulsivos como dificuldade de ajustar ações mesmo diante de novas informações. Há baixa flexibilidade cognitiva ou resistência a mudar hábitos ou crenças. Além disso, vem a pressão social ou medo de se destacar ou ser punido por agir diferente. E, por fim, o mais comum: autoengano coletivo ou racionalizações que justificam o erro contido nas expressões “todo mundo faz assim”, “não tem outro jeito”.
Mas será que isso é eterno e que não tem jeito? Não é bem assim. Há diversos casos históricos em que sociedades mudaram drasticamente de comportamento coletivo, mesmo após longos períodos de resistência ou erro consciente. Essas mudanças geralmente foram impulsionadas por crises, movimentos sociais, avanços tecnológicos ou transformações culturais profundas. Isso aconteceu, por exemplo, na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Depois do fim do colapso nazista, a sociedade alemã passou por uma reconstrução moral e institucional profunda. O país adotou políticas de memória, educação e justiça que transformaram radicalmente sua cultura política e social. Hoje, a Alemanha é uma das democracias mais estáveis da Europa, com forte compromisso com direitos humanos. Para não ficar só na Europa, lembremos da Revolução cultural no Irã, em 1979, que transformou radicalmente o comportamento coletivo, especialmente em relação à religião, vestimenta e papel da mulher. Embora controversa, foi uma mudança abrupta e profunda, com impacto duradouro na sociedade iraniana. Por fim, temos a China. Em menos de duas décadas, os chineses passaram de uma sociedade majoritariamente rural para uma potência digital. O uso de pagamentos móveis, redes sociais e plataformas digitais se tornou onipresente, mudando hábitos de consumo, comunicação e trabalho.
Essas mudanças mostram que comportamentos coletivos podem ser profundamente transformados, mesmo quando parecem arraigados. O gatilho costuma ser uma combinação de educação, liderança, crise e oportunidade. Portanto, é preciso alguém para plantar a semente da mudança, uma liderança. Não basta um nome novo ou diferente, mas alguém que transforme. Existe esse nome hoje na política de Cícero Dantas? Com relação à educação, vale lembrar que é um empresário da educação que está perpetuando a crise. Em relação à oportunidade, ela sempre surge a cada 4 anos. Basta focar na transformação, caso apareça. Por fim, resta a presença da crise. Há alguma dúvida de que já a vivenciamos por um longo período?
