Sem julgamento, caso do assassinato de Cival Neres causa revolta

O vigilante Lucival Neres dos Santos, 27 anos, foi assassinado em Cícero Dantas por volta das 22 horas do dia 31 de dezembro do ano de 2009. Seu corpo foi encontrado nas proximidades da BR-110, na saída da cidade de Cícero Dantas em direção ao município de Ribeira do Pombal. Os motivos do crime ainda não foram revelados de imediato. Duas possibilidades foram levadas em conta: uma discussão de trânsito ocorrida entre a vítima e o proprietário de um Gol branco; e crime passional. A última vez que Cival, como era popularmente conhecido, foi visto vivo marcava em torno de 21 horas do dia fatídico. Ele bebeu algo no bar Tira Fino e seguiu para a morte. Seu corpo foi encontrado por volta das 23 horas ao lado de sua motocicleta. Nada foi roubado, reforçando a tese de assassinato. A vítima era filho do ex-vereador Antonio Nere, de Cícero Dantas. Era casado e pai de uma menina. Trabalhava como vigilante no Colégio Estadual José Dantas de Souza, em Heliópolis. A autópsia foi feita em Feira de Santana. Seu corpo foi alvejado por um único tiro na barriga.
Após idas e vindas, finalmente chegaram ao suspeito: o médico veterinário João Pimentel Nilo. E é aí que o problema começa. O acusado tem sobrenome de peso e ligado a políticos influentes na Bahia. Quinze anos depois, mais exatamente no dia 12 de junho de 2025, o caso de homicídio de Lucival Neres dos Santos, foi arquivado por prescrição, decisão tomada pelo juiz Bruno Barros dos Santos, que declarou a extinção da punibilidade com base no artigo 107, inciso IV, do Código Penal. A defesa argumentou que, como João Pimentel Nilo tinha 20 anos na data do crime, o prazo prescricional foi reduzido pela metade — de 20 para 10 anos — e que esse prazo já havia sido ultrapassado antes mesmo do recebimento da denúncia em 2021. No último dia 16 de junho, a família da vítima publicou nota no Instagram lamentando o desfecho, alegando impunidade.
A prescrição, embora polêmica em casos de homicídio, é um pilar do sistema jurídico que busca equilibrar o direito de punir do Estado com as garantias individuais do acusado. Ela estabelece um prazo máximo para que o Estado possa investigar, processar e punir alguém por um crime. Passado esse tempo, extingue-se a possibilidade de punição — mesmo que o crime tenha ocorrido. O problema é que não se atenta ao caso da hipótese de ser o Estado gerido por famílias poderosas que, usando destas brechas jurídicas, cometem crimes e são protegidas pelo mesmo sistema. Coloca-se em dúvida se a Lei foi criada para forçar a punibilidade ou para proteger poderosos.
No caso de homicídios dolosos, por exemplo, o prazo de prescrição pode chegar a 20 anos, mas esse tempo pode ser reduzido pela metade se o réu for menor de 21 anos na data do crime. A lógica por trás disso é que, com o passar dos anos, provas se perdem, testemunhas desaparecem ou esquecem os fatos, e o julgamento pode se tornar injusto tanto para a vítima quanto para o acusado. Por outro lado, muitos juristas e familiares de vítimas argumentam que a prescrição em crimes tão graves pode gerar sensação de impunidade e enfraquecer a confiança na Justiça. Em Cícero Dantas isso não é novidade, e muito menos na Bahia. São inúmeros os crimes sem acusados, sem investigação e sem punição, quando há acusados, principalmente se se tratar de pessoas influentes. Há, inclusive, propostas para tornar o homicídio doloso imprescritível, como já ocorre com crimes como tortura, racismo e ações de grupos armados contra o Estado.
A prescrição em casos de homicídio tem implicações sociais profundas e muitas vezes dolorosas. O caso de Cival beira o ridículo porque não houve julgamento. A demora foi nitidamente benéfica ao acusado, sem falar nos erros investigativos. Só para se ter uma ideia, fala-se que o corpo foi sepultado sem a extração do projétil para a devida análise. Não foi nem mesmo a decisão do juiz, mas a procrastinação das investigações. Daí vem a sensação de impunidade e a certeza de que o autor escapou da Justiça. Além disso, não se pode negar a dor e a frustração vividas pela família de Lucival. Para quem perdeu um ente querido, a prescrição representa uma segunda violência, uma outra perda. Ver o caso encerrado, sem julgamento, é a certeza de que a Justiça é seletiva e falha sempre com as famílias às margens do poder.
E poderíamos aqui também enumerar as consequências que o assassinato de Lucival Neres pode gerar na sociedade. É fato, o aumento da criminalidade. Ao não confiar mais na justiça republicana, muitos querem fazer justiça com as próprias mãos. Também é possível aumentar a ideia de que a Justiça protege os poderosos porque eles têm influência e dinheiro. Para defendê-los, a Justiça é veloz; para acusá-los é um bicho preguiça. Inclusive, em muitos casos, a prescrição ocorre por inércia do sistema — falta de investigação, demora no oferecimento da denúncia ou morosidade processual. Isso afeta principalmente vítimas com menos recursos ou visibilidade midiática.
Muita coisa pode melhorar, é verdade, se houver ainda mudanças na legislação, digitalização e modernização tecnológica, estímulo à conciliação e mediação, Julgamento de processos antigos, revisão das custas judiciais e gratuidade, capacitação e valorização dos servidores, transparência e participação social – inclusive acabando com os processos sigilosos. Se acontecesse tudo isso, já daríamos um passo significativo rumo ao progresso. Há casos na Bahia de juízes que deram sentenças em processos que já haviam sido extintos. Uma completa desorganização. Mas a maior de todas as transformações revolucionárias que o judiciário poderia nos oferecer era apenas seguir o preceito constitucional de que todos são iguais perante a lei. O assassinato de Lucival Neres dos Santos é a prova contundente de que, em Cícero Dantas, para se fazer Justiça, é preciso que o assassino não tenha um sobrenome poderoso.